Por Maria Ignez Carvalho Ferreira
Instituto de Veterinária - UFRRJ
No livro A origem das espécies, publicado em 1859, Darwin afirma que as características individuais são passadas dos pais para os filhos e que estas são “fatores hereditários” que controlam a vida de todos nós. Essa afirmação levou os cientistas a uma busca frenética para decifrar os mecanismos hereditários responsáveis pela vida.
Em 1865, Gregor Mendel demonstrou que as características dos descendentes eram herdadas de gerações anteriores, dando margem ao chamado determinismo genético, ou seja, os genes determinariam nossas características, e estas não poderiam ser alteradas. Esta explicação ganhou dimensão de doutrina ao inspirar experimentos eugênicos e nos livrou da responsabilidade sobre nossas ações, jogando toda responsabilidade na biologia.
Desde o inicio do século vinte, os pesquisadores *1 vêm tentando decifrar os mecanismos hereditários responsáveis pela vida. A pesquisa chegou ao fim 50 anos atrás, quando James Watson e Francis Crick descreveram a estrutura e a função da espiral dupla do DNA, o material do qual os genes são feitos. Os cientistas finalmente entendiam os “fatores hereditários” que Darwin mencionou em seus manuscritos no século XIX.
Quando a estrutura do DNA foi elucidada e o código genético decifrado, ficou obvio que, trocas mesmo em um único nucleotídeo do DNA, poderia drasticamente interromper a leitura da informação genética. Os genes passaram então a ser a explicação para tudo e os mecanismos pelos quais o DNA controla a vida biológica se tornaram o dogma central da biologia molecular, descrito com detalhes em todos os livros.
No final do século 20, uma das ilusões mais cultivadas foi a de que o Projeto Genoma desvendaria os responsáveis por disparar centenas de doenças. Se, num primeiro momento, o seqüenciamento do genoma pretendia “desvendar o código da vida” e seqüenciar em humanos cerca de 100 mil genes, sua conclusão desmitificou a superioridade humana, ao revelar que nosso genoma (com cerca de 30 mil genes) difere pouco do genoma das plantas e que 99% dos genes têm equivalência em camundongos. O Projeto Genoma mostrou que embora os seres humanos pudessem ter um genoma muito maior que os organismos menos complexos, não apresentavam muitos mais genes codificantes de proteína*2.
Mais do que esmiuçar seqüências de genes para encontrar qual deles estava relacionado a alguma enfermidade ou comportamento, os pesquisadores buscaram entender como os genes se encaixavam e interagiam entre si. Verificaram que os genes comportavam-se diferentemente em células de tecidos distintos, podiam ser ativados ou desativados, podiam dar origem a produtos diferentes e que outras estruturas além do DNA, desempenhavam papéis fundamentais na síntese de proteínas. Concluíram que as teorias evolutivas centradas nos genes são limitadas e que o quadro de primazia do DNA tem muitas falhas.
Começaram então a surgir observações de que os padrões hereditários poderiam ser modificados pelo ambiente, trazendo a tona uma teoria arduamente debatida desde que Lamarck (1744-1829) concebeu a idéia que levou seu nome.
A ciência atual deixa claro que pelo menos um terço do que observamos não se encaixa na genética mendeliana clássica (Premios Nobel 2006 em química e fisiologia ou medicina) e que há dois mecanismos pelos quais os organismos transmitem suas informações hereditárias. Ambos permitem aos cientistas estudar tanto as contribuições da natureza (genes) quanto as do ambiente (mecanismos epigenéticos).
Os mecanismos epigenéticos modificam a leitura do gene sem modificar o código de DNA. Este novo e mais sofisticado fluxo de informações da biologia começa com um sinal do ambiente que age sobre as proteínas reguladoras, depois sobre o DNA, o RNA e finalmente sobre o resultado final, a proteína.
Quando a genética mendeliana apareceu, biólogos evolutivos levaram quase 30 anos para alcançá-la. O mesmo acontece agora. Hoje, a transmissão de características adquiridas é conhecida até em humanos. A hereditariedade epigenética é um fato, mas, pode levar mais vinte anos até que os biólogos evolutivos a alcancem.
O Projeto Genoma*3, mais do que um fim, representou um recomeço da investigação sobre o complexo funcionamento de organismos vivos. Após estudar o conjunto de nossa informação genética, ficou claro que, mais do que genes, somos também nosso ambiente, nossa sociedade, nossas decisões.
A epigenética foi a rasteira que a natureza deu nos geneticistas que julgavam ter matado a charada da vida.
*1 No campo da genética algumas descobertas foram laureadas com o premio Nobel de fisiologia ou medicina enquanto outras receberam o premio de química (Morgan 1933, Crick, Watson e Wilkins 1962, Nirenberg e Khorana 1968, Berg, Gilbert e Sanger 1980, Mc Clintock 1983, Altman e Cech 1989, Roberts e Sharp 1993, Mullis e Smith 1993, Fire e Mello 2006, Kornberg 2006, Capecchi, Smithies e Evans 2007).
*2 O DNA (ácido deoxiribonucleico) contém as informações para formar as proteínas, que realizam todas as funções e determinam características dos organismos vivos. É uma molécula grande composta de quatro unidades básicas (nucleotídeos) ligadas em uma longa fita. Se atribuirmos a cada unidade uma letra, então podemos representar os genes codificantes de proteína como sendo palavras longas espalhadas ao longo do cromossoma. Estas “palavras” têm um significado especial e codificam um jogo de instruções a respeito de que tipo de proteína será construída. Todo erro em uma palavra, mistura a leitura da informação genética e poderá interromper ou alterar a proteína a ser formada (mutação).
*3 Aspectos importantes do Código Genético:
- O código genético é válido para qualquer ser vivo.
- A leitura do código genético é feita sem sobreposições ou pausas; se 1 ou 2 nucleotídeos são deletados, a leitura torna-se completamente diferente a partir do ponto da deleção.
- Um códon específico codifica sempre o mesmo aminoácido.
- A complexidade morfológica e fisiológica dos seres vivos não é necessariamente refletida em diversidade do número de genes.
Leituras complementares:
Dias Correia, J. H. R.; Dias Correia, A.A. Alguns aspectos funcionais do epigenoma, genoma e transcriptoma nos animais. Revista electrónica de Veterinaria 2007, Vol. VIII Nº 10.
http://www.veterinaria.org/revistas/redvet
Eckhardt,F., Beck, S., Gutt, I.G. e Berlin, K. Future potential of the Human Epigenome Project. Expert Rev Mol Diagn 2004, Sep;4(5):609-18.
Garcia, E.S. Epigenética: além da seqüência do DNA.
http://www.jornaldaciencia.org.br/
Dias Correia, J. H. R.; Dias Correia, A.A. Alguns aspectos funcionais do epigenoma, genoma e transcriptoma nos animais. Revista electrónica de Veterinaria 2007, Vol. VIII Nº 10.
http://www.veterinaria.org/revistas/redvet
Eckhardt,F., Beck, S., Gutt, I.G. e Berlin, K. Future potential of the Human Epigenome Project. Expert Rev Mol Diagn 2004, Sep;4(5):609-18.
Garcia, E.S. Epigenética: além da seqüência do DNA.
http://www.jornaldaciencia.org.br/
Lindsten, J. e Ringertz, N. The Nobel Prize in Physiology or Medicine, 1901-2000. inserido de:
http://nobelprize.org/nobelprizes/medicine/articles/lindsten-ringertz-rev/index.html
What is Epigenetics?
http://www.epigenome-noe.net/aboutus/epigenetics.php
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